Por sete horas nossas bikes treparam colinas e subiram morros nos levando a um altiplano que espalhava o mundo.
O contínuo subir e subir derrubava todos os limites e o homem habitualmente confinado entre paredes se via solto como um pássaro no céu. Era só com a força de nossas pernas e braços que vencíamos os domínios das águias e gaviões. Jacus repetiam suas chamadas pelas brenhas que os desafiados ciclistas corriam ou se arrastavam.
Para o aficionado por mountain bike que participou de dezenas de provas o Desafio Lavras-Carrancas teve uma organização impecável. Não pedalávamos dois quilômetros sem passar por algum cruzamento ou bifurcação, a possiblidade de ter 500 ciclistas perdidos no chapadão era completamente possível. Assim os amigos organizadores bateram anticipadamente todo o trajeto fechando com uma linha bem visível de cal por onde não devíamos entrar e desenhando setas por onde devíamos seguir.
Naquelas lonjuras, muitos mata-burros tem o sentido longitudinal, prato feito para um tombo feio. Mas uma marcação gritante nos avisava de cada ponto perigoso, fosse uma curva fechada com uma ponte estreita impossível de se ver a tempo, fosse um trecho pedregoso e cheio de valetas.
No alvorecer do dia 1º de maio de 2014, dezenas e dezenas de homens e mulheres saíram do meio de Lavras como uma revoada de formigas voadoras e correram pela beira do asfalto até largar o mundo civilizado e entrar pelo mundo das emoções fortes. Subindo com imenso esforço ou descendo vertiginosamente corríamos o tempo todo o risco de um acidente ou mal-estar.
O evento juntou no fim do cortejo uma caminhonete para recolher as bikes quebradas e duas, não era uma só, eram duas as ambulâncias que como anjos da guarda nos acompanhavam. Foram várias as intervenções delas para levar para fora da imensidão de morros os que ficavam sem forças.
O ar seco que fazia a vegetação ali naqueles altos ser do tipo caatinga também ressecava os esforçados desafiados. Então em três pontos dos 70 km, no meio do nada encontrávamos aqueles benvindos oásis com água e frutas. Tudo perfeito para ajudar-nos em nossa imperfeição humana.
E não parávamos de pedalar.
O Desafio Mountain Bike Lavras-Carrancas não é uma corrida, é uma prova que submete o ciclista aos limites de sua perseverança, coragem e resistência. Para o leigo em ciclismo de trilhas pedalar 70 km é quase inimaginável, porém para quem pratica esse esporte é uma distância bastante confortável. Raramente uma pedalada vence menos que essa distância. Mas passar tantos quilômetros só subindo e fazendo força nas pernas e braços é um evento que não nos acontece com frequência. É um Desafio que você precisa enfrentar pelo menos uma vez na vida.
Quando, logo depois de uma curva, já num trecho mais plano, demos de frente com um ponto de apoio, um ônibus para recolher os muito esgotados e o asfalto que indica que só restam 10 km pela frente, sentímos um imenso alívio. O Desafio estava terminando, bate até uma saudade do início da prova há seis horas atrás. Então corremos para a chegada cheios de alegria por termos conseguido fazer o percurso.
Espere aí! Que troço é aquele lá na frente? Cadê Carrancas, gente? Quem botou aquela muralha lá na frente? Tão de sacanagem com a gente! Não adianta reclamar amigo desafiado de primeira viagem. Para chegar ao objetivo você ainda tem que vencer o subidão. Descendo a ladeira do asfalto e nos aproximando do imenso paredão a gente vai ficando assustado. Jovens empurram suas bicicletas já com a resistência no limite. Digo para meu colega próximo: É vou abrir o bico. Ele responde com palavras divinas: Não desista antes de tentar, Zé; vamos ver até onde aguentamos ir. E os músculos esgotados, pinicando, querendo abrir o berreiro numa câimbra braba vão empurrando os pedais e vamos subindo metro por metro.
São cem metros até a primeira curva. Carros passam por nós carregando as bikes. São jovens esportistas em plena flor da idade que chegaram ao ponto final muito antes do velho ciclista.
Mais cem metros e outra curva. Porque a estrada, lá em baixo, vira primeiro à esquerda, depois à direita nos jogando de cara com a pedreira esmagadora, e torna a virar à direita para subir a terrível encosta. Passo por jovens que se arrastam empurrando suas bikes e nos meus 70 anos brinco com eles: estão dando um descanso as magrelas, garotada? E continuo rodando os pedais.
Mas por incrível que pareça – deve ser coisa da mente da gente – não estou hiperventilando, ficando sem ar ou com as pernas sem forças, não, consigo um ritmo ideal e lá vou serra acima numa boa.
Ao virar a montanha, aí sim, lá está Carrancas esparramada entre paredões de pedra e cercada de rios e cachoeiras. Lugar abençoado. A descida é vertiginosa e o vento forte quase arranca a bike do chão. Segurando firme nos freios o ciclista chega ao ponto final. Carros e mais carros saem carregando as bikes como animais de estimação. Entramos no terrenão que é um formigueiro de ciclistas alvoroçados e faladores, todos se dando o parabéns por terem vencido o Desafio. Hora de receber a medalha e posar para a foto.
Orgulho misturado com gratidão, é isso que o ciclista sente ao mesmo tempo em que pensa: obrigado meu Deus.
Ah, sim, ano que vem vou precisar da ajuda do Senhor novamente, porque vou voltar ao Desafio Mountain Bike Lavras-Carrancas.