Grande perigo há em seguir um cavaleiro andante.
- Já dá pra ver que estás lendo Dom Quixote de La Mancha, Zé.
Um homem com ideais e com certezas inamovíveis, é sempre perigoso. Ele convence outros a lhe seguir as ideias e leva os pobres a desmandos e dificuldades que só ele vê como grandiosas aventuras. “Solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem e pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto martelou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de escudeiro”. Assim é que o timorato Beto consegue, a cada semana, tirar do sossego de seu lar, uma chusma que sai pedalando toda alegre. Vencem subidas, atravessam riachos e espalham lama com a alegria de quem estivesse num parque de diversão.
- O mesmo se dá com você, Zé, que convida, chama e apela até convencer um magote de homens a deixar a poltrona confortável para pedalar sabe-se por onde.
Aquele que se acha cavaleiro, que pensa reformar o mundo, seja com uma bíblia na mão ou sentado em um selim, não pode esquecer a tentação. Não digo que a semelhança seja inteira, mas que faz igual ao outro não se pode negar. Ele sempre chamando, oferece: Tudo isso te darei se pegares tua bike e me seguires. “Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote, que se dispusesse a acompanha-lo de boa vontade, porque bem podia dar o caso que do pé para a mão ganhasse uma ilha, e o deixasse governador dela. Com essas promessas e outras quejandas, Sancho Pança, que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos e se assoldadou por escudeiro do fidalgo”.
Quando se lê, depois, o resumo de suas fabulosas aventuras, nunca li que Beto, o fidalgo, tenha caído, rebentado a corrente de sua bike ou só furasse o pneu, não. Mas sempre tem a contar dos percalços que seus seguidores passam. Assim, é o Zé. Às vezes o parceiro das pedaladas reclama dos difíceis caminhos que para o guia sonhador, por ser pior ficou muito melhor. “A mim não me deram vagar, respondeu Sancho, quando logo me benzeram os lombos com os paus; e pouco me importa saber se foram afrontas, ou não, as bordoadas”. Mas não se apoquente, paciente escudeiro, pois o Guia tem sempre uma palavra de incentivo: “Sabe, irmão Pança, que não há lembrança que se não gaste com o tempo, nem dor que por morte não desapareça”.
- Vá de retro!
Mas é, e na semana seguinte, passado as canseiras e já com cascas nos arranhados, lá estão eles todos felizes reunidos na padaria para saírem em mais um aventura.
- Mas quem chama para um pedal devia prover um carro de apoio...
E um mecânico, uma ambulância, pontos com água gelada e frutas. Mas convenhamos, aí o pedal vira uma academia ao ar livre. Perde-se a aventura. Desde quando a bicicleta foi inventada pelo alemão Barão Karl von Drais, em 1817, ela é considerada um meio de transporte muito instável. Só com duas rodas pode tombar para a esquerda ou para a direita. Então, quem se aventura a seguir uma estrada com sua bike sabe muito bem que está testando seu equilíbrio e bom senso. Assim, mantenhamos o ciclismo no ramo incerto das aventuras, do inesperado.
Quando Zé chama os colegas, insiste mesmo com eles, para subir uma montanha, ele visualiza mais do que a subida que leva o ciclista a ver o mundo lá do alto. Ele quase imagina que lá em cima coisas fantásticas ocorrerão.
Quem lidera uma pedalada nunca está muito distante do Cavaleiro da Triste Figura, que dizia: “Sabe, amigo Sancho, que a vida dos cavaleiros andantes está sujeita a mil perigos e desventuras, assim como, sem mais nem menos, estão eles sempre muito próximos de subirem a reis e imperadores”. E tem gente que acredita!